
Bisturí 1.
Desgravações da minha alma
Não quero que me chamem pelo nome
Prefiro que me tratem por você. Assim não me desgasto. Também não vou dizer o teu nome. E não pensemos no teu estado actual: destruída. Nestas bolsas existem outros nas mesmas condições. Alguns regressam. Parece arriscado mas acreditei ter reconhecido alguns cabelos. A seguir prefiro pensar que são invenções. Como eu. Nada é simples, isto não é uma frase. Vi a morte em pessoa passeando-se por aí como uma coquette no céu.
Não tomo notas. Trabalho de memória.
Dá-me uma sensação asquerosa de realidade puxar de uma esferográfica: abrir um caderninho é asqueroso. Não gosto de deixar testemunho. Se uma pessoa pensa que todas estas bolsas eram gente com família, imobiliza-se. Quando chegas, a primeira coisa que te dizem é que se solucionam como palavras cruzadas, sem psicologia. Os sentimentos por um lado e as bolsas por outro.
Gosto de me sentir parte de algo grande.
Vou atrás de um objectivo enorme. Sinto a necessidade imperiosa de modificar. Não suporto ser um elemento passivo, quero sentir que estou a participar. Quando ia à montanha tinha por hábito mudar algumas pedras de lugar. Essa subtil diferença fazia-me bem. Estive aqui, dizia-me. Não há que destruir, há que ajudar o movimento. Um objecto imóvel é uma derrota de Deus. Isto é o mesmo, mas a grande escala.
As viúvas vêm preparadas para fazer escândalo.
Abro-lhes a bolsa e mostro-lhes os pés mortos. Quando começam a duvidar, quando se dão conta de que nunca conheceram os pés, mostro-lhes o resto. Entretenho-me estudando cada forma de dor. Há dez ou doze.
Há pouco, trouxeram uma rapariguinha.
Tinha as mãos apertadas. Tive que a lavar e então percebi que estou muito doente. Não me importo de a limpar com o trapo. Depois da autópsia, como ninguém a veio reclamar, desenredei-lhe o cabelo.
Lembrei-me de mim quando era miúda. Queria trabalhar num circo. Um dia desenhei que me disparavam de um canhão e os rostos de espanto dos espectadores, vistos de cima. O meu pai riu-se e chamou-me infeliz. Observei o desenho e rasguei-o lentamente em tiras perfeitas. Graças ao meu pai sou uma profissional. Não há nada mais real que a morte.
Olho para o meu assistente e imagino-o na mesa de dissecações.
Abro a sua camisa cinzenta, corto a corrente. É sumamente peludo e correcto. Parece normal. Mas isso é impossível. Que misérias o aguardam? O seu tórax é um quadrado perfeito, atravessado por músculos tensos. Diz que está apaixonado. Canta e sempre se organiza para sorrir, mesmo que não haja motivo. Enquanto se saca uma bala de um maxilar com o bisturi manchado, não se pode ser feliz.
Traducción: ALBERTO AUGUSTO MIRANDA
Imagen: Eric Fischl